Aos meus livros
Sobre hábitos de leitura e uma declaração de amor aos livros e às mulheres escritoras.

hábitos de leitura
Nunca me considerei ser uma criança que gostava de ler. Inclusive, até ao final da infância, dizia precisamente que não gostava de ler. Se calhar porque me perguntavam isso e eu tinha apenas 7, 8, 9 anos, uma idade em que ainda estamos a cimentar a nossa capacidade literal de ler, ou por sentir que não encaixava no protótipo da “criança leitora”. Não estava sempre de cabeça enfiada nos livros, não andava com um livro atrás, não pedia para me comprarem livros.
Até chegar aos 10, 11 anos e começar a receber como prenda livros sobre a adolescência, que adorava e lia e relia. Até descobrir os livros do Clube das Amigas e ter uns dois ou três exemplares, ou os Diários de Sofia, que tentava levar para casa sempre que os encontrava à venda. Até aparecerem as revistas das W.I.T.C.H., a minha grande predilecção.
No entanto, foram sempre leituras espaçadas. Acabei por não ler nada do Harry Potter até bem mais tarde, por exemplo. Aliás, eu passei ao lado de toda a ficção juvenil porque, ali aos 13 anos, cometi a loucura de levar comigo para umas férias o exemplar d’O Código Da Vinci que havia cá em casa. Fiquei curiosa com o livro que estava a levantar tanta polémica e quis tentar perceber do que se tratava. E… oh, meu Deus! Eu fiquei agarrada, o que é expectável, é um livro de entretenimento feito para agarrar leitores. Mas funcionou! E, o melhor de tudo, abriu de vez o portão já entreaberto para eu me tornar alguém que gosta de ler.
Depois d’O Código Da Vinci devorei os restantes do mesmo autor. Fui ficando mais online e descobri a comunidade dos adolescentezinhos pseudo-intelectuais que gostavam de ler. Ler… livros grandes. Foi assim que, durante uns tempos, me agarrava a calhamaços românticos de hipermercado a achar que estava a ler o suprassumo da literatura. Continuo agradecida à Lesley Pierce e aos seus livros que vinham dentro de um saquinho de organza por me fomentarem o hábito da leitura. Genuinamente gostava de os ler, eram histórias com drama, amor, uma protagonista feminina com quem dá para se identificar q.b. e, não sendo um Nobel, eram bem escritos para o que pretendem ser.
Ir avançando na idade trouxe-me novas referências literárias e fez-me ficar atenta a outros nomes e outros estilos. Começaram as minhas primeiras idas à Feira do Livro de Lisboa comigo a trazer para casa Paul Auster, Saramago, Fitzgerald, enfim, autores que saltam à vista por serem muito badalados. A minha biblioteca foi crescendo, dos clássicos aos contemporâneos, passando pela literatura distópica típica de uma miúda de Humanidades virada à esquerda. Olhando em perspectiva, é estranho para mim ver as fotos das minhas compras e ser quase tudo livros escritos por homens, mas já lá vamos.


A leitura estava, definitivamente, entranhada em mim, e eu era agora uma pessoa que gostava de ler. No entanto, continuava a sentir que não encaixava no protótipo do “leitor”. Mais uma vez, não andava sempre a ler nem trazia um livro comigo para todo o lado. Eu gosto de ler na cama, antes de dormir, e pronto. Com excepção da praia, também gosto de ler aí, já que vou com os meus pais e consigo levar um livro para estar sossegada no meu canto a ler. Ocasionalmente, quando a vida me dá viagens longas de transportes, posso levar um livro que me esteja a cativar no momento. Também já cheguei a trazer o livro para as manhãs de sábado que passo no trabalho, mas agora uso esse tempo para escrever. Portanto, eu leio quase todos os dias, sim, naquele momento específico. É um hábito entranhado em mim, como lavar os dentes antes de deitar.
Depois, estou loooooonge de ter grandes metas de leitura. Às vezes leio mais livros, outras vezes leio menos. Em teen, cheguei a ter um ano em que li apenas dois (!!) livros, porque antes de ir dormir preferia ficar a trocar mensagens. Tenho alturas em que o livro me prende e acabo por devorá-lo, tenho outras em que me arrasto porque não está assim tão interessante. Apesar de ser flexível nas minhas metas, gosto de ler uma quantidade razoável de livros por ano, pois isso significa que reservei o tal momento, antes de dormir, para me dedicar à leitura, ao invés de estar agarrada a um ecrã. Significa, igualmente, que me ponho à descoberta de novos livros e autores. Ou autoras.
as mulheres escritoras
Como vos disse, na minha adolescência fiz o check em muitos livros escritos por gajos que toda a gente nos ensina que são espetaculares (alguns são, atenção, até tenho autores homens de que gosto). Na faculdade descobri a Gillian Flynn, a autora do Gone Girl, que escreve uns thrillers brilhantes, sempre com uma protagonista feminina complexa, louca, psicótica, enfim, absolutamente marada dos cornos. Fiquei a pensar no porquê de eu ler tantas histórias masculinas quando podia estar mergulhada na literatura feminina. E não é que não o tenha feito, aos 14 fui à biblioteca requisitar Clarice Lispector. Pouco tempo depois, arranjei o meu exemplar de Orgulho e Preconceito. Mas havia algo de difícil e complexo nestas histórias e nestas autoras.
Hoje em dia, a minha biblioteca cresceu para se tornar muito, muito feminina. Agarro-me aos livros escritos por mulheres pois estes traduzem uma vivência universal e transversal a todas nós. O ano passado, de 15 livros que li, só três foram escritos por homens. Este ano, só li ainda um livro de um autor masculino, e foi a minha pior leitura até agora. A semana passada fui às compras duas vezes à Feira do Livro, e trouxe mais uma carrada de livros de mulheres.


Perdoem-me a arrogância orgulhosa, mas fiquei a pensar nisto e a conclusão a que chego é que os livros de autores homens são consagrados e aclamados porque são… simples. Neutros. Fáceis de entender e de serem louvados por um mundo masculino por defeito. Os homens que decretam o que é bom, valioso e de qualidade agarram-se facilmente ao que outros homens têm para dizer.
Difícil é ser homem e perceber o universo feminino. A complexidade das nossas vivências, dos nossos sentimentos e emoções. O amor e a paixão, a amizade, a vida familiar. As lutas internas, a solidão e a auto-descoberta. Para isso, é preciso dar o passo além do umbigo e, não o fazendo, as autoras acabam fora dos holofotes, cabendo aos leitores mais atentos partir à sua descoberta.
Encontrei a Maria Judite de Carvalho porque uma amiga ma mostrou. Todas as outras autoras mulheres chegaram até mim através de mulheres, seja online, seja na ficção, num filme, numa série. Orgulho-me dos meus exemplares de livros escritos por mulheres e gosto de os ter comigo. Mesmo já com pouquíssimo espaço na estante. O que me levou a outra reflexão.



“a minha casa é onde estão os meus livros”
(E se eu vos disser que essa frase é uma das que vai aparecendo na homepage do Idealista? 💀)
A minha casa está em obras e a maior parte dos meus livros está empacotada no sótão, à espera que esse espaço se torne utilizável. Com as trocas e baldrocas que fui fazendo no quarto, acabei por ficar apenas com uma estante e alguns livros mais recentes. Entretanto, com o passar do tempo, está cheia e estou a ficar sem espaço para guardar os meus livros.
Não costumo ter o hábito de reler livros (embora devesse ler com outros olhos algumas obras que me passaram pelas mãos demasiado nova), então cada livro é quase de utilização única. Além disso, faço requisições frequentes na biblioteca municipal. Para que é que quero ter livros, afinal? O que faz de um livro um objecto tão especial para que se mantenha na estante de quem o guarda? Faz sentido comprar um livro quando o posso ir buscar à biblioteca e devolver?


Andei a pensar nisto e a conclusão a que chego é a de que cada livro na estante, que realmente nos interesse e que nos tocou de algum modo, tem em si um pedaço de nós. Eu não podia ir à biblioteca e requisitar o Perder-se, da Annie Ernaux. Eu precisei de o comprar para o ler, sublinhar e anotar, e ficar na estante a lembrar-me do que significou para mim e do que deixei dentro dele. E dos outros que cá ficam, seja para reler mais tarde, emprestar a alguém, ou simplesmente mostrarem às visitas um pedaço de quem eu sou.
Não me interessa se tenho “muitos livros” ou se estou “sempre a comprar livros”, eles são parte de mim e eu sou parte deles. O meu sonho de rica é ter uma divisão de casa só como biblioteca. Não é “o escritório”, é uma divisão SÓ para ser a minha biblioteca - uma ideia de loucos para quem só gosta de ler na cama, antes de dormir. Mas ficarei eternamente feliz e realizada se eventualmente conseguir ter a divisão de escritório&biblioteca. E fico contente se o melhor que conseguir alcançar for uma sala de estar forrada a estantes. Neste momento, tenho um móvel de cubos no quarto e umas caixas de cartão, lá em cima no sótão. A biblioteca pessoal adquire muitas formas ao longo da vida do seu dono e o seu valor é muito mais qualitativo do que físico ou material.
Então, como se consegue perceber, os livros e a leitura estão comigo desde sempre. Mas, admito, neste último meio ano apoiei-me muito na literatura para desviar a mente de outros assuntos. Isso fez-me ser criteriosa nas escolhas literárias que tenho feito e obrigou-me a estar mais no momento presente na leitura (muitas vezes eu “leio” mas estou a divagar na minha mente, o que faz com que não retenha nada do que li). Por isso sinto que, além do hábito rotineiro de pegar num livro antes de dormir, reforcei o meu amor a estes objectos.
Entre isso e as recentes idas à Feira do Livro que me deixaram entusiasmada, estou simplesmente rendida de paixão. Eu amo os meus livros, amo, amo. Foi por perceber que este amor estava adormecido que quis escrever este texto. Porque vou vivendo a vida no automático, a chegar à noite, pegar no livro, ler, acabá-lo, pegar noutro, etc., sem nunca ter parado para reflectir no que este hábito é para mim, de tão entranhado que o tenho. Então aqui está a minha singela homenagem à leitura, às mulheres escritoras (e alguns escritores, vá), e aos livros.
Agora só queria três meses de férias mediterrânicas para me dedicar à leitura de tudo o que comprei na Feira…
nota da edição
Abri este espaço em Janeiro porque queria obrigar-me ao exercício de escrever algo semanalmente. Sou muito procrastinadora, costumo deixar as coisas a meio e, muitas vezes, não ultrapasso o impasse do desânimo de não ter o sucesso que acho que seria merecido (peço desculpa pela franqueza, mas é o que é). Assim, desafiei-me a aparecer e, mesmo que não tivesse nenhum leitor, iria continuar. Nem que fosse só pelo exercício da escrita, eu queria continuar. E também queria ver o que poderia acontecer se, de facto, me dedicasse minimamente a algo em vez de desistir tão facilmente.
Estou longe de ser obcecada com as estatísticas da minha Crónica, mas não queria deixar de assinalar que comecei com quatro e-mails de amigas que inscrevi quando abri a conta - em total desrespeito pelo RGPD, diga-se de passagem-, e hoje tenho 25 (!!!) subscritores. Já fui para lá das pessoas que conheço, portanto há quem me leia sem eu saber quem é, e por isso estou muito feliz!
Obrigada a quem está cá desde o início e a quem chegou há pouco tempo. A quem me recomenda e também a quem me guarda só para si. A quem lê a newsletter assim que cai no e-mail e até a quem não as abre desde Março. Embora possa parecer pouco impressionante num panorama mais abrangente da Internet, ter 20, 30, 50 visualizações é, para mim, muito bom. Estar, neste momento, a escrever o meu 22.º texto é uma evolução fantástica da miúda que escrevia duas vezes por ano num blog moribundo que chegava a um, dois leitores.
Obrigada por estarem desse lado. Desejo-vos um excelente Verão, com muitas leituras, uns bons Santos, um feliz mês do Orgulho.
Vemo-nos para a semana,
Rafaela
Esta tua crónica de hoje, vem mesmo a calhar a propósito de um ensaio da Roxane Gay que li ontem à noite, sobre o facto da etiqueta "women's fiction" ser usada quase como uma etiqueta de literatura de segunda categoria para se referir a livros escritos por mulheres. Diz ela: "There are books written by women. There are books written by men. Somehow, though, it is only books by women, or books about certain topics, that require this special "women's fiction" designation, particularly when those books have the audacity to explore, in some manner, the female experience, which, apparently includes the topics of marriage, suburban existence, and parenthood, as if women act alone in these endeavours, wedding themselves, immaculately conceiving children, and the like. Women's fiction is often considered a more intimate brand of storytelling that doesn't tackle the big issues found in men's fiction. Anyone of who reads knows this isn't the case, but that misperception lingers. As Ruth Franklin notes, "The underlying problem is that while women read books by male writters about male characters, men tend not to do the reverse. Men's novels about suburbia are about society; womens novels about suburbua are about women"".
Este ano tambem tenho comprado mais livros de muheres. A verdade é que o ano passado li uns quantos livros escritos por homens e me comecei a aperceber do modo superficial como as personagens femininas existiam nas histórias dos homens. Acho que se calhar é um daqueles canon events na vida das mulheres.
Desculpa o testamento e continua a escrever. Gosto de te ler.