Aproveitando os ares revolucionários de Abril, quis hoje trazer-vos umas quantas sugestões de filmes que teriam posto os nossos governantes do tempo da outra senhora às voltas no caixão. É impressionante pensar que houve um tempo em que não podíamos ver os filmes que nos apetecesse, filmes marotos então nem pensar!
Sabiam que o costume português de legendar filmes vem disto mesmo? Como na ditadura a maioria da população era analfabeta, o governo de Salazar optou por legendar filmes estrangeiros, pois assim só a elite teria acesso a estes. Pelos vistos há mesmo males que vêm por bem porque, à conta disso, temos um contacto muito directo e imediato com línguas estrangeiras, nomeadamente o inglês, fazendo com que os portugueses tenham facilidade em dominar o idioma. (Pelo menos, é a minha teoria.)
Não é de loucos pensar que, nos anos 60, enquanto os Estados Unidos estavam a viver uma revolução sexual, o tempo dos hippies e do amor livre, progressos sociais, nós tínhamos aldeias do interior em que se vivia como se fosse 1830? Sem saneamento básico, sem electricidade, sem telefone? Que, na minha cidade, colada a Lisboa, havia casas sem casa-de-banho?
Com o 25 de Abril acabou a censura e os filmes proibidos. Foi exibido, pela primeira vez em Portugal, o Garganta Funda, o filme pornográfico mais famoso e rentável de todos os tempos. A fila dava voltas ao quarteirão.
O Deep Throat tem como protagonista Linda Lovelace que, no decorrer do filme e em toda a época que se seguiu, foi violentada, abusada e explorada sexualmente. O filme rendeu milhões de dólares, tal como vos disse, foi o filme pornográfico mais lucrativo de sempre. A Linda Lovelace auferiu pouco mais de 1200$, que foram roubados pelo namorado que ela tinha na altura, responsável por explorá-la, violentá-la e vendê-la à indústria pornográfica. Este era um à parte que vos trazia, se quiserem conhecer esta história, recomendo verem o filme Lovelace. Não posso, em boa consciência, mencionar o Garganta Funda sem referir e dar voz à perspectiva da sua vítima. Fica como sugestão bónus.
Adiante, que este não é um texto sobre a indústria pornográfica. É sobre cinema.
Aqui vos deixo uns quantos filmes que exploram o tema da sexualidade e que, de alguma forma, me impactaram e achei interessantes.
Shortbus
Gatilhos e avisos: nudez, actos sexuais explícitos, depressão, suicídio
É-me impossível não começar esta lista por este filme. O Shortbus apareceu na minha vida após ter sido recomendado pela Leonor de Oliveira, do Pronto a Despir, numas histórias de Instagram. Costumo dizer que não sou monogâmica com as minhas Artes mas, se tiver de responder de forma rápida à pergunta “qual é que é o teu filme preferido?”, o Shortbus poderá ser a minha escolha.
Este filme acompanha três arcos de personagem diferentes: um jovem adulto muito deprimido e com ideação suicida que se sente culpado pelo estado da sua relação, pois o companheiro ama-o de coração e ele não consegue sair da escuridão; uma sexóloga e terapeuta de casal que não consegue atingir o orgasmo em nenhuma das suas relações sexuais; e uma jovem trabalhadora sexual, que faz serviços de dominatrix, e vive sozinha, isolada e em condições precárias.
Os caminhos destes três protagonistas cruzam-se e encontram-se no Shortbus, uma espécie de espaço cultural onde não há limites nem tabus. O Shortbus é um ponto de encontro fulcral para que as três personagens avancem nas suas histórias e ultrapassem os seus desafios, apoiados uns pelos outros e por toda a comunidade que se junta no espaço.
É um filme lindíssimo que, muito mais do que sexo, é sobre a vida. Ou sobre como a nossa vivência da sexualidade implica tanto a forma como agimos na vida. É um filme que tem um olhar de compaixão e empatia por todas as personagens. Tendo em conta o tema do filme, é de louvar como este nunca resvala para uma exposição gratuita e desnecessária, nem para um tom vulgar ou superficial.
O Shortbus é de 2006 mas podia ter sido do ano passado, de tão moderno e avant-garde que se mostra. Além de tudo o que já disse de bom, queria apenas acrescentar que o filme foi escrito em conjunto com os seus actores, o que talvez tenha contribuído para um resultado tão bonito, com uma entrega tão genuína de todos.
Encontra-se no Stremio.
The Art of Loving
Este filme conta a história verídica de Michalina Wisłocka, uma médica ginecologista e a primeira sexóloga da Polónia, e da sua luta para publicar o seu primeiro livro sobre sexualidade, que contou com a objecção do Partido Comunista da Polónia, tão desnecessariamente conservador nos costumes. Michalina conseguiu publicar o seu livro, que foi um best-seller e viria a mudar a vida sexual dos polacos para sempre. Foi muito inspirador conhecer esta história. Não sei até que ponto será realidade ficcionada, mas Michalina apresenta-se curiosa sobre a sexualidade desde tenra idade e, no entanto, tinha uma vida sexual pouco satisfatória, mesmo fazendo parte de um trisal. Depois, tudo muda quando ela se separa dessa família e conhece um homem com quem consegue, finalmente, vivenciar tudo o que lhe estava a passar ao lado.
Vi na Netflix, não sei se ainda estará por lá.
The Duke of Burgundy
Cynthia é uma académica que se dedica a estudar borboletas e traças. Na vida pessoal, vivencia uma fantasia sadomasoquista de dominação-submissão com Evelyn, a sua companheira. Esta é a premissa do filme e não consigo adiantar muito mais sem desvendar a moral da história deste enredo. The Duke of Burgundy é um daqueles filmes que começa por enganar o espectador e, no final, percebemos que afinal as coisas não são como parecem. Adorei a exploração do tema das fantasias de dominação-submissão, mais uma vez sem resvalar para a vulgaridade, e com grande complexidade emocional. Acrescento que a vivência entre as duas não é violenta, sendo a fantasia de cariz mais psicológico, caso sejam sensíveis nesse ponto.
Acrescento ainda que, esteticamente, este filme é lindíssimo! Pelo figurino, diria que nos remete para os anos 50/60. The Duke of Burgundy entrega uma certa delicadeza que achei que combinou bem com a temática sáfica do mesmo. A fotografia é encantadora, todo o filme nos presenteia tons outonais, dando uma vibe de dark academia que eu gostei muito. As borboletas dão o toque de charme final.
Mais uma vez, vi no Stremio.
Y Tu Mama Tambien
Mais um que descobri nas stories da Leonor, Y Tu Mama Tambien é um filme mexicano que acompanha a viagem que dois amigos fazem, na companhia de uma mulher mais velha, pelo México. Sendo eu uma mulher, foi curioso ver um filme contado mais pelo olhar masculino, já que acompanha o desabrochar sexual dos dois amigos, na fase final da sua adolescência. É um filme muito emotivo pelo que se descobre de uma das personagens já perto do final. Além da temática da sexualidade, o filme tem uns toques de luta de classes que gostei muito de notar.
Adivinhem… Stremio (está no Prime mas não disponível em Portugal?!). Um dia podemos falar sobre como, numa era com umas 735 plataformas de stream diferentes, há muito cinema que só está acessível graças à pirataria. Enfim.
E assim me despeço. Espero que algum dos filmes vos tenha suscitado curiosidade e, se os forem ver e quiserem comentar, estão à vontade. Foi para isto que se fez Abril!
Até para a semana,
Rafaela