Os putos do ATL
E as mães deles.
Fear of missing out é um sentimento que foi identificado, pela primeira vez, em 1996, por um fulano do marketing (claro). Descreve uma espécie de ansiedade e apreensão que podemos sentir por estarmos de fora de algo, perdendo o que de incrível poderá estar a acontecer por dentro desse mesmo algo. Nas últimas décadas, o fenómeno do FOMO exponenciou-se devido à internet, às redes sociais e ao aumento da partilha da nossa vida no espaço online.
Penso que a primeira vez que senti este FOMO foi na Escola Primária, por causa dos putos que ficavam na escola até mais tarde, nas suas Actividades de Tempos Livres, vulgo, o ATL. Os putos do ATL eram, a meus olhos, assim uma espécie de casta especial do recreio, pertencentes a um género de clube privado pós-aulas onde eu não entrava.
Os putos do ATL navegavam a sociedade escolar com a confiança que só quem sabe que Pertence A Algo onde muitos não estão tem. As aulas acabavam e entravam nas horas onde despachavam os TPCs, podiam brincar mais com os amigos, e faziam actividades várias. Os putos do ATL tinham passeios que os outros não faziam. Os putos do ATL sabiam variações dos jogos de mãos que não chegavam ao conhecimento de quem não estivesse na escola depois das 15h30. “É assim que se faz no ATL!” Os putos do ATL tinham continas especiais que só os conheciam a eles e que eram jovens e muito queridas, mas que não tinham de tratar de mais ninguém, eram exclusivamente as contínuas do Á Tê Éle.
Estes miúdos ficavam na escola depois das aulas terminarem porque tinham mães super modernaças que trabalhavam e depois iam buscá-los de carro porque tinham a carta. Ao contrário da minha, que era uma senhora no início dos seus 40s, que teve esta gravidez tardia nos anos 90 e foi uma mãe velha na idade em que, hoje em dia, muitas mulheres têm o primeiro filho - com sorte! Nos anos 2000, uma senhora de 40 e picos, nascida no final dos anos 50, era, por isso mesmo, uma senhora. Ao contrário da contemporaneidade, em que pessoas de 40 anos são jovens adultos, solteiros, sem filhos, com substacks onde partilham os seus junk journals. (E ainda bem!)
A minha mãe, com a sua quarta classe, sem nunca ter tirado a carta (arrepende-se), com o cabelo armado da mise e as roupitas singelas, cujas dinâmicas familiares e domésticas fizeram com que se tornasse dona-de-casa a tempo inteiro (arrepende-se), e que me podia ir buscar à escola em vez de me deixar no ATL. A minha mãe que, por não ser como as outras, os putos do ATL pensavam ser a minha avó.
“Está ali a tua avó!”
“Vi-te com a tua avó!”
“A tua avó está-te a chamar!”
Não é a minha avó, é a minha MÃE.
Mas pronto, não é a primeira vez que tenho parentescos trocados por ser tão estranho aos outros quando a matemática das idades não lhes faz sentido - experimentem ter um sobrinho 3 anos mais novo do que vocês. Não, não é meu primo.
Este FOMO era muito inconsciente e talvez fruto de um certo constrangimento de a minha mãe não ser modernaça e não trabalhar. Não sei, parecia-me estranho, como se ela estivesse presa a normas antigas um pouco contra a sua vontade. Mas, para dizer a verdade, eu não me importava nada em não estar no ATL. Para começar, porque podia ir almoçar a casa e desfrutar, precisamente, da comida da minha mãe. Depois, porque ficava a tarde toda a ver os bonecos com o meu sobrinho (que não é mesmo meu primo). Os TPCs sempre soube fazer sozinha sem precisar de chatear ninguém, portanto também não era uma questão.
Olhando para trás, o tempo que não passei na sociedade secreta infantil que é o ATL, passei noutros ambientes e a aprender outras coisas. Onde estão as minhas colegas que tinham de ficar no ATL? Será que estão nos seus postos de trabalho (seguiram as pisadas das mães delas!), fartas, a querer ter um filho sem saberem como se planear de tempo, e a lamentar que as feministas um dia se lembraram que estar presas num escritório é que era libertação? “Como é que é possível, por isto é que a minha mãezinha tinha de me deixar no ATL sem direito a ver-me crescer, alguma vez isto é vantajoso para mim?” Caindo na esparrela do tradwifeismo que lhes promete a felicidade e liberdade à conta dos investimentos em crypto dos seus namorados deslumbrados pelo Dubai?
Couldn’t be me!!! Crescer com uma mãe dona de casa deu-me um Passe VIP para assistir ao desespero silencioso que é estar financeiramente dependente de outra pessoa. Há propagandas em que eu, simplesmente, não vou cair. Mas que já vejo mulheres jovens, da minha idade, a namorarem… A pensarem sobre isso… Cuidado, meninas.
Não estar na casta dos putos do ATL deu-me oportunidade de crescer dentro do Círculo das Mulheres Mais Velhas, ouvindo as suas conversas e aprendendo com as suas vidas. Conheço histórias, relatos e testemunhos de várias mulheres e das suas vivências pessoais e familiares, o que me muniu de alguma sabedoria que, pelo que já percebi, nem toda a gente tem. É por isto que sei que os maridos ficam chatos quando passam muito tempo sem terem nada; que é preciso ter cuidado com enteados; que ficar solteira traz uma solidão pouco falada mas que ficar viúva pode trazer um alívio igualmente pouco falado; fora isso, todo o repertório de expressões, ditados e dizeres antigos que sei, bem como aquele falar quase por código de mulher portuguesa antiga e que encontro na obra de Maria Velho da Costa.
Por vezes penso se teria sido melhor para mim ter passado mais tempo a brincar com outras crianças da minha idade, em vez de estar à escuta de conversas sobre casamentos desgastados e famílias semi-funcionais. Outras penso se era, eu própria, pertencente à elite privilegiada dos que podiam ir para casa depois da escola, benefício reservado para quem tinha avós ali por perto ou mães não-modernaças como a minha.
Quem, no final de contas, é que está realmente na classe alta da sociedade da escola primária? Não sei. Mas que os putos do ATL gozavam o prato, gozavam. Não me lixem!!!
algumas notas várias
1 - Tive a ideia para este texto porque, subitamente, apareceram-me na cabeça as palavras “os putos do ATL” e achei que dava um título giro para depois discorrer sobre este sentimento da minha infância, esta sensação de que essas crianças pertenciam a um clube próprio onde vivenciavam coisas que estavam fora do meu alcance. Não estava à espera que discorresse para o que se tornou. Urge-me explicar que o sentimento expresso perante os putos do ATL (e das suas mães) é sob o olhar de uma Rafaela entre os 6 e os 10 anos de idade. Entretanto, sei o que é a vida familiar estar à mercê do capitalismo e, de facto, mães e pais terem de entregar as suas crianças aos cuidados de outras pessoas durante mais tempo do que o desejável. Não quis, com este texto, criticar as mães trabalhadoras nem julgar a necessidade de deixar os miúdos no ATL, e espero que não seja essa a leitura que transparece.
2 - Por ossos do ofício, dei por mim num portal imobiliário dedicado a imóveis de luxo e deparei-me com esta beleza. Uma mansão acastelada cheia de charme, à beira rio, assim de repente uma pessoa até pensa que podia fazer algo parecido à margem do Zêzere. Nos últimos anos, ganhei tamanha aversão à tendência minimalista que transformou todas as casas em clínicas dentárias greige, que agora adoro tudo o que sejam casas esquisitas, antigas, cheias de rococós e com personalidades muito próprias.
Mas, enfim, a quem é que eu quero enganar? No fundo, eu sou uma city girl e, se a vida me fosse justa, era neste modesto apartamento com vista para o Central Park que eu viveria:







Gostei muito deste texto, porque me fez lembrar um detalhe da minha própria infância. Nunca andei no infantário/creche/pré-primária. Até aos 3 anos, enquanto a minha mãe trabalhava ficava com a minha avó e depois dos 3 anos passei a andar a reboque da minha mãe que era professora primária e como os tempos eram outros ninguem questionava o facto de uma criança estranha à turma estar ali mais. Isso fez com que eu sendo a primeira filha e primeira neta de uma família muito pequena, me tenha habituado desde cedo a ouvir conversas de adultos sem meter o bedelho e a saber coisas que crianças da minha idade não sabiam, fruto das aulas dadas pela minha mãe. Com 4 anos sabia quem tinha descoberto o caminho marítimo para a índia e quem tinha sido o primeiro rei de portugal. Com 5 anos aprendi a ler e quando foi altura de me matricular, entrei logo para a segunda classe. Oficialmente, eu só tenho 3 anos de ensino primário e para transitar para o quinto ano, tive de fazer um exame de conhecimentos.
Esta infância foi diferente de todas os amiguinhos que fui fazendo na escola e confesso que não raras vezes me senti uma criança estranha e solitária por esse percurso tão singular.
A minha mãe teve-me aos 39 anos, sendo ela própria também filha mais nova. Cresci convivendo com tias, vizinhas e amigas da minha mãe a quem não faltava a experiência e sabedoria da idade. Aprendi muito com essas senhoras. Ainda hoje gosto de conversas com pessoas mais velhas. Além dos seus modos educados e genuínos, sinto conforto quando as ouço, pois vivem com a calma de quem quer apreciar os seus últimos dias com intenção, e as histórias que têm para contar nunca se esgotam.