
O fenómeno do Extremamente Desagradável passou-me ao lado durante muito tempo. Influenciada por outros fregueses da minha aldeia digital, que eram abertamente críticos do programa, fui deixando passar a coisa sem lhe dar grande importância. Até que, já não me lembro porquê nem sei precisar quando, fui começando a ouvir um episódio ou outro. Quando dei por mim, estava agarrada e tornei-me uma ouvinte fiel desta mítica rubrica da Rádio Renascença.
A Joana Marques tem sido tema nestas últimas semanas porque, mesmo a tempo de abrir a silly-season, finalmente começou o dito julgamento do processo que os Anjos lhe instauraram. (Será que este jargão legal está bem aplicado? Esperemos que sim.)
O Extremamente Desagradável vai de férias até Setembro (oooooh…) e, em jeito de despedida, nos últimos dois episódios a Joana vitimou o colega Salvador Martinha. Ouvi os dois episódios no dia em que cada um deles saiu. Se, no primeiro, estava um apanhado caricatural bem típico do Extremamente Desagradável, no segundo a coisa resvalou um bocadinho para o lavar de roupa suja e não, não estou a culpar a Joana Marques.
Não querendo fazer aqui um relato por extenso do episódio, ao que parece, o Salvador Martinha, picado porque a sua irmã Marta Gautier tinha sido tema de uns episódios da rubrica, decidiu fazer um bit numa actuação de standup a visar a Joana Marques e, mais concretamente, o seu marido Daniel Leitão. Do que foi reproduzido, o bit foi fraco e muito deselegante, no mínimo. Mas toda esta situação, aliada ao escândalo com os Anjos e a outras reflexões que tenho feito, deu-me a vontade de deitar umas coisinhas cá para fora.
Extremamente Desagradável - o fenómeno
Nesse episódio, apareceram uns excertos do podcast Ar Livre, do Salvador Martinha, em que ele dizia que havia alguns programas do Extremamente Desagradável que eram “bem esgalhados” mas que havia outros que não tinham assim tanta graça. Eu concordo. Esta é uma das críticas que mais se aponta à Joana Marques: que a rubrica não tem piada. Pode ser verdade, não há propriamente uma construção de uma piada, não há punchline, é só deixar desenrolar os excertos do visado do dia e fazer um pequeno apontamento em relação ao que foi ouvido.
Não posso dizer que discordo, mas posso dizer o seguinte: penso que o problema de muitas pessoas é não entenderem o Extremamente Desagradável. Acham que eu ouço porque considero que a Joana Marques faz excelentes piadas ali? Não. O Extremamente Desagradável - e o trabalho da Joana Marques, claro - tem a louvável tarefa de me dar acesso a um certo zeitgeist cultural que, de outro modo, me passaria completamente ao lado. Gustavo Santos, Tiago Grila, influencers várias, momentos de programas de TV… Se não fosse a Joana Marques, eu não teria acesso a nada disto. Se eu podia viver sem estas coisas? Claro. Mas se me dá um gozo do caraças saber como funciona a mente e como é a vida destes cromos? Também.
o humorista desconstruído
Nunca fui a nenhum espectáculo do Salvador Martinha. Uma vez, comecei a ver o tal Especial que ele tem na Netflix e, ao fim de um terço do programa, desisti. Não estava a achar grande graça, não me prendeu, dei ghost. No entanto, eu acompanho o Salvador Martinha. Comecei a ouvir o Ar Livre desde o princípio e afeiçoei-me àquele monólogo, às coisas em que ele pensava e às opiniões que debitava. Depois parei de ouvir durante muito tempo e agora, quando o convidado me interessa, vou espreitando.
O Salvador parece boa pessoa: um tipo que sabe pensar, que fala de temas sociais e traz uma vontade de ser melhor, largando certos preconceitos e estilos de humor datados. Ainda assim, optou por fazer um bit a visar a Joana Marques e o marido que se focava em questões da intimidade sexual do casal, com punchlines gordofóbicas à mistura. Zero inteligência. Para usar do mesmo lingo dos humoristas, o material não era fresco. Aliás, o Salvador admite isso quando comenta o próprio bit que fez. Ok. Então por que é que o fez? Mesmo que ele quisesse dar umas pancadinhas à Joana, por que é que não pensou melhor? Não arranjou novos ângulos? E limitou-se ao básico: são gordos e não sei como é que fazem sexo.
Apesar de eu não saber se gosto ou não do Salvador-humorista, eu simpatizo com o Salvador-conversadeiro. Custa-me um bocado perceber, desta forma, que o Salvador-conversadeiro se calhar não é assim tão desconstruído nem está assim tão focado em melhorar. Porque, sem querer, lá vai um racismozinho… lá vai uma gordofobia… Porquê? O que é que ele ganhou, enquanto artista, com os risos dos haters da Joana Marques que estavam na plateia naquele dia?
Gosto de ter uma atitude positiva em relação às novas vozes do humor, muitos deles parecem-me boas pessoas e que sabem pensar além do básico. Mas depois sai uma destas cá para fora e fico a pensar se não andam todos a passar a figurinha de fake nice guy, escondendo dentro deles a essência do humorista bully.
egos estupidamente inflados
Uma coisa engraçada que aconteceu com os humoristas millennial e que já se transporta para os humoristas GenZ é o quanto eles se levam a sério. Deve ser algum efeito secundário de terem uma profissão que os leva para cima de palco ouvir risos e aplausos, ficam a achar que são rock stars. Ou hip-hop stars, porque o humorista é um tipo que adora sentir-se um rapper. Ele é um guarda-roupa street style, ele é sessões de fotos extremamente bem produzidas, ele é um desenhar estratégico e minucioso de gestão de carreira…
A sério. Eu já ouvi humoristas a contar que um dos amigos estava a meio do seu xixi enquanto conversava e aconselhava o outro sobre “moves de gestão de carreira”. Manos, vocês têm um podcast de conversa de café. Calma.
Isto já vem de longe. Na geração anterior, os humoristas também se começaram a levar muito a sério. Só que em vez de carrosséis de fotos muito pausadas, escrevem artigos e crónicas, e fazem programas de sketches sobre como os limites do humor são um atentado à arte, e como qualquer dia é proibido uma pessoa rir-se, e a comédia passa a ser uma coisa clandestina. Um espectáculo de masturbação egóica com o propósito de provarem a si mesmos a sua própria importância.
Por que é que, em vez de se focarem em fazer melhores piadas, se resignam a ficar chateados porque alguém não gostou da piada que não teve assim tanta graça? Qual é a panca de querer defender com unhas e dentes o direito de se fazer piadas racistas, machistas, homofóbicas?
capital cultural e o público medíocre
Vamos entrar aqui novamente em terrenos um bocadinho snobs, pode ser? Pois bem, todos estamos a par de como a nossa sociedade é organizada por diferentes classes sociais, certo? Para usar os termos mais politicamente aceites, sabemos que existe uma classe baixa, uma classe média e a classe alta. Pronto, com nuances pelo meio, a coisa é mais ou menos esta. Há uma grande maioria de população que está nas duas mais baixas, e depois temos a minoria abastada. Isto em termos de posses materiais, dinheiro, propriedades e coisas que tal.
Se transpusermos isto em termos de capital cultural, a coisa é semelhante: a maioria da população tem um capital cultural médio-baixo e, depois, há uma minoria de pessoas que tem mais capital cultural. Como capital cultural podemos entender o conhecimento, a bagagem e as referências que uma pessoa tem em relação às diversas artes: literatura, cinema, música, pintura, etc. Em termos práticos (e muito snobs, novamente), é por isso que um artista pop facilmente esgota um estádio de futebol, mas um músico mais erudito fica-se pelos auditórios da Gulbenkian. Um consegue apelar às massas, a todas as classes de capital cultural. O outro, possivelmente só está acessível à classe cultural mais abastada. Isto poderia levar a uma discussão sobre mérito artístico e gostos estéticos mas não é para aí que quero ir.
Existe uma razão pela qual um humorista que faz piadas racistas consegue ter sucesso: porque a maioria da população é racista não é politizada o suficiente para perceber as implicações sociais de se continuar a propagar estereótipos racistas. “É só uma piada!” “Agora não se pode dizer nada!” Ou seja, não detêm capital cultural que as faça perceber que estão num espectáculo fraquinho. E por ali ficam.
Longe de mim estar a implicar que todos os humoristas fazem piadas racistas. Não, de todo. Voltem duas secções atrás: eu quero acreditar que os novos comediantes pensam de outro modo e procuram novos ângulos para os seus textos.
Mas deixar de lado o humor bully não significa que se faça um bom texto nem que se seja bom humorista. O bit pode ser inócuo e, ainda assim, ser fraco. Não ter graça. No entanto, dependendo de quem é a plateia que está a assistir, podem-se ouvir largas gargalhadas, e os espectáulos podem esgotar datas atrás de datas. E é aqui que está o problema: quando o público é fácil e basta uma punchline básica para encantar audiências, o ego incha mais uma vez, e o comediante volta a achar-se mais do que aquilo que é. Depois, se alguém ousa criticar as piadas ou o humor praticado, essa pessoa é que está errada, é snowflake e não percebe. E é assim que temos tantos humoristas medíocres a deslumbrar um público igualmente medíocre, num círculo vicioso com duas partes que se alimentam mutuamente.
Chegando ao fim desta Crónica, pode ficar a sensação de que eu sou uma hater do humor e dos comediantes portugueses, e isso não poderia estar mais longe da realidade. Eu gosto muito do mundo do humor, daí acompanhar tanto e tão de perto. Até vos digo, em jeito de confidência, que em tempos tinha começado a escrever uns 5 minutinhos de standup para experimentar subir a palco. Acredito que o humor tem um papel importante na cultura e na sociedade, principalmente quando o humorista tem a coragem de fazer do alvo do seu humor o agressor, o privilegiado, o status quo. O que me aborrece é quando o saco de pancada continua a ser o pequenino e a punchline continua a ser a mais básica. Vamos pensar mais além porque manter esse registo, além de ser muito preguiço, não tem piada.
Adorei. Adorei ainda mais que falámos sobre o mesmo, mas cada uma no seu estilo e da sua maneira haha
Concordo com o que disseste da Joana Marques, não a acompanho por ser humorista, mas pelos tesourinhos deprimentes que ela apresenta.
Quanto ao Salvador, não acompanho muito, mas vi uns episódio do Ar Livre e pareceu um gajo que pensa e é evoluído, por isso é que fiquei tão chocada. De qualquer das formas, acho que ele, enquanto humorista, seria fraquinho.
Gostei da tua observação de se levarem muito a sério, realmente, é verdade. O que é engraçado porque o humor é saberes rir-te de ti próprio também, mas em vez disso, eles ficam super ressabiados e mandam punch de volta completamente desrespeitadores e fracos.
Não sou uma ouviente fiel do ED, mas volta e meia lembro-me de ir lá espreitar um episódio. E acho que o que tu disseste é bastante pertinente: não é sobre ela ter piada, porque os comentários dela acabam por ser um bocado aquilo que nós pensamos mas não verbalizamos; a parte boa do programa é precisamente a exposição dos cromos da semana e o acesso a coisas absurdas que nos passariam ao lado. O Batáguas faz um trabalho parecido todos os meses, mas com um bocadinho (ok, um bocadão) de mais piada.
"Por que é que, em vez de se focarem em fazer melhores piadas, se resignam a ficar chateados porque alguém não gostou da piada que não teve assim tanta graça? Qual é a panca de querer defender com unhas e dentes o direito de se fazer piadas racistas, machistas, homofóbicas?"
Honestamente? Porque eu acho que eles têm perfeita noção que não conseguem fazer melhor do que isso, e porque o público-alvo deles são as pessoas que acham que isso é engraçado. Simples.
"Existe uma razão pela qual um humorista que faz piadas racistas consegue ter sucesso: porque a maioria da população é racista não é politizada o suficiente para perceber as implicações sociais de se continuar a propagar estereótipos racistas. “
Olha pronto, comentei cedo demais xD
"E é assim que temos tantos humoristas medíocres a deslumbrar um público igualmente medíocre, num círculo vicioso com duas partes que se alimentam mutuamente."
👏👏👏👏👏
Posto isto tudo, o que achas do Guilherme Duarte e do Batáguas?